D. Dinis e a supressão da Ordem do Templo (1312)

D. Dinis e a supressão da Ordem do Templo (1312): o processo de formação da identidade nacional em Portugal
 In: Cultura e Imaginário no Ocidente Medieval. Arrabaldes - Cadernos de História. Série I. Niterói: Uff, 1996, p. 90-95.

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"Sobre tôdolos pecados, bem parece ser mais torpe, sujo e desonesto o pecado da sodomia, e não é achado outro tão aborrecido ante Deus e o mundo como ele; (...) e por este pecado foi destruída a Ordem do Templo per toda a Cristandade em um dia..." (Ordenaçoens do Senhor Rey D. Affonso V. Parte I, livro V, tomo XVII, p. 86-89. Citado em MARQUES, 1987: 128-129).

Lateral do castelo templário de Tomar (séc. XII, no Ribatejo, atualmente na Freguesia São João Baptista, Concelho de Tomar, Distrito de Santarém).

As Ordenações Afonsinas apenas registram a idéia corrente no século XV: os templários - ordem religiosa-militar criada na Palestina em 1120 por Hugo de Payens - foram suprimidos por seus inúmeros pecados, entre eles o da sodomia (LEHMANN, 1989: 165). As inúmeras acusações levantadas no processo movido pelo rei da França, Filipe IV, o Belo(1285-1314), não impediram que o rei de Portugal, D. Dinis (1279-1325), agisse de maneira diferente com os templários portugueses.

As acusações eram: "...bestialidade, adoração de ídolos, negação de sacramentos; de vender a alma ao Diabo e adorá-lo na forma de um enorme gato; de sodomia  entre  eles e  relações com demônios e súcubos; de exigir dos iniciados que negassem Deus, Cristo e a Virgem; de cuspir três vezes, urinar e pisar na cruz, e dar o "beijo da vergonha" no prior da Ordem, na boca, no pênis e nas nádegas..." (TUCHMAN, 1990: 41).

A transferência dos bens templários para a Ordem de São João de Jerusalém - conforme decisão do Concílio de Vienne (1311-1312) -, não aconteceu em Portugal - a Ordem de São João foi criada na Palestina pouco antes da Primeira Cruzada ("...duas famílias amalfitanas, os Mauris e os Pantaleonis, em 1048, solicitaram ao califa fatímida Mustansir Billah [1036-1094], por intermédio de ricos presentes, permissão muçulmana para construção de um hospício, um hospital e um convento [...] com o objetivo de acolher e abrigar peregrinos que afluíam à cidade de Jerusalém" - COSTA, 1994: 14).

Posteriormente, a Ordem do Hospital foi adaptada para uma ordem militar, sem abandonar sua origem assistencialista). Como veremos, D. Dinis agiu de maneira extremamente oportuna, ao nacionalizar os bens da Ordem do Templo, fortalecendo ainda mais a coroa lusa frente ao papado.

Este artigo pretende discutir a supressão dos templários e a criação da Ordem de Cristo, inserindo-os dentro de um âmbito maior, o da lenta formação de uma identidade nacional portuguesa. Este processo, precoce em relação às demais potências européias, possibilitou aos lusos a dianteira na expansão marítima dos séculos XVI-XVII. Para isso, precisamos antes introduzir o tema no espaço e no tempo a que diz respeito.

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Os templários causam aos historiadores dificuldades interpretativas: "...são ainda hoje (e sobretudo hoje) uma instituição difícil de entender" (SARAIVA, 1988: 265). Em recente e ainda inédita palestra proferida na Universidade Estácio de Sá (1993), o Dr. Rui Vieira da Cunha, ao se referir aos templários, salientou que não desejava aparecer com "novos fantasmas".

Isso se deve em parte ao grande número de lendas que se formaram já a partir da execução do último grão-mestre, Jacques de Molay, além de ordens maçônicas que se intitulam herdeiras da Ordem do Templo. Jacques de Molay teria lançado uma maldição sobre o rei francês e seus descendentes até a 13.ª geração, no momento de sua execução na ilha de Sena, em 18.03.1314, convocando Filipe, o Belo e o papa Clemente V para se encontrarem com ele perante Deus dentro de um ano.

O fato é que Clemente V morreu um mês depois, e Filipe após sete meses, aos 46 anos. Além disso, "...em sucessão, Luís X, Filipe V e Carlos IV reinaram menos de seis anos cada e morreram com 27, 28 e 33 anos respectivamente, sem deixar sucessor masculino, apesar de terem tido os três juntos um total de seis esposas" (TUCHMAN, 1990: 43).

Deixando este caminho místico de lado, resta ater-nos às fontes. Para podermos levantar as questões propostas acima, é necessário traçar o caminho político percorrido por D. Dinis no curto período de 1307-1319, anos que englobam a prisão dos templários na França e a criação da Ordem de Cristo em Portugal. Não abordaremos o processo em si, já bastante conhecido (BARBER, 1991), mas o que se passou em Portugal, particularmente as relações entre D. Dinis e o papado.

Já em 1306, pressionado por Filipe, o Belo, o papa Clemente V (1305-1314) ordenou que se reunisse um Concílio na Espanha, com o objetivo de investigar o comportamento dos templários na Península. A reunião deu-se em Salamanca, com a presença do arcebispo de Santiago, além de onze bispos, entre eles o de Lisboa, D. João de Soalhães (ALMEIDA, volume I, 1967: 154). O fato é que nada foi constatado que comprometesse os freires do Templo.

Após a prisão dos templários na França em 1307, Clemente V, através da bula Callidis serpentis (30.12.1308), solicitou a D. Dinis que fizesse o mesmo com os templários portugueses. O rei luso não atendeu ao pedido do papa. Além disso, os templários e seu mestre, D. Frei Vasco Fernandes, haviam se ausentado do reino, por razões desconhecidas.

Conjunto arquitetônico de Tomar.

Fortunato de Almeida levanta a possibilidade de terem ido se justificar perante o papa (ALMEIDA, volume I, 1967: 155). Consideramos tal hipótese improvável. Desde 1309 o papado achava-se em Avignon, perto da foz do Ródano, feudo do reino de Nápoles e Sicília, mas sob influência política da França (TUCHMAN, 1990: 25); os templários franceses estavam presos. D. Vasco Fernandes não se arriscaria a ser capturado pela simples tentativa de conversar com Clemente V. É mais provável que estivesse aguardando o desenrolar dos acontecimentos.

Devemos discutir a posição tomada por D. Dinis. Portugal já havia tido inúmeros problemas com a Igreja: Em 1192 o cardeal Rinério lançou sentenças de excomunhão e interdito sobre Portugal e Leão; em 1208, Sancho I foi excomungado e morreu nessa condição, em 1210. Só em 1213 o papa Inocêncio III ordenou aos juizes eclesiásticos que absolvessem Afonso II de excomunhão (com uma multa de 50.000 cruzados).

Mas a querela entre Portugal e a Igreja não parou aí: em 1218 o bispo de Lugo renova o processo de excomunhão; em 1220, o arcebispo de Braga excomungou novamente Afonso II. Honório III confirmou a excomunhão e ameaçou expor o reino de Portugal à conquista de outros soberanos, além de absolver seus vassalos do juramento de fidelidade. Afonso II  também  morreu  excomungado, em  1223. Em 1231, Portugal sofreu novo interdito papal, levantado em 1233 pelo papa Gregório IX. Os conflitos desembocaram em 1245, na deposição de Sancho II e a guerra civil (MATTOSO, s/d).

Agora, o momento era oportuno para tentar resolver a questão dos bens templários: a Ordem do Templo possuía um imenso território em terras lusas, espaço que seria entregue ao papado, em Avignon, portanto, sob influência direta de Filipe, o Belo. Todos sabem que a Península Ibérica espelhava a rivalidade entre França e Inglaterra - que mais tarde desembocaria na Guerra dos Cem Anos, em 1328: Castela, pró-França, Portugal, pró-Inglaterra. Com a eclosão da guerra, a posição de Portugal foi a seguinte: Afonso IV optou pela Inglaterra, em nível de neutralidade militar (relações diplomáticas e acordos comerciais).

Nesse intrincado jogo político internacional, os bens templários poderiam criar um cisma geopolítico no reino português. Além disso, houve propostas de união das duas ordens hierosolimitanas, templários e hospitalários (DEMUGER, 1986: 236). Isto significaria a união dos bens lusitanos do Hospital e do Templo: seria um "estado dentro do estado", já que rivalizaria com o rei português em termos de posses senhoriais.

Diante da posição de D. Dinis, Clemente V, em 1310, determinou que se realizasse novo Concílio, novamente para investigar a conduta dos templários ibéricos. Reuniram-se duas assembléias: uma em Medina del Campo - onde foram citados os templários de Castela e Leão - e outra novamente em Salamanca, com a presença do bispo de Lisboa, D. João da Guarda, e do bispo da Guarda, D. Vasco. Os acusados foram mais uma vez inocentados, mas "os prelados abstiveram-se de proferir sentença, que reservaram para o Papa" (ALMEIDA, volume I, 1967: 155)

Para precaver-se contra qualquer medida papal, D. Dinis firmou um pacto com seu genro, Fernando IV de Castela (1285-1312). Os monarcas se comprometiam a defender as posses templárias de seus respectivos reinos (21 de janeiro de 1310. O rei de Aragão poderia, se quisesse, entrar no pacto) (ALMEIDA, volume I, 1967: 155).

A firme postura dos reis de Portugal e Castela levou Clemente V a incluir a seguinte cláusula em sua bula Ad providam(2 de maio de 1312): todos os bens da Ordem do Templo seriam transferidos para a Ordem do Hospital, exceto os situados nos reinos de Castela, Aragão, Portugal e Maiorca.

Inserida nesta mesma bula, havia a seguinte condição: os reis da Península eram obrigados a não alienarem as propriedades templárias, até que a Igreja tomasse uma decisão definitiva.

Com o novo papa, João XXII (1316-1334), os procuradores portugueses alegaram que a transferência dos bens templários para a Ordem do Hospital acarretaria danos à coroa. Embora os hospitalários, desde Frei Afonso Peres Farinha, sempre estiveram em afinidade com a coroa, o fato é que a Ordem do Hospital portuguesa era subordinada ao grão-comendador da Hispânia, que residia em Castela (MATTOSO, 1986: vol. II, 164).

O grão-comendador era a autoridade máxima da ordem na Península, subordinado diretamente ao grão-mestrado, que nesse período residia na ilha de Rodes - em 1291 a ordem havia sido expulsa da Palestina pelos muçulmanos. Isso futuramente provocaria problemas quanto à gerência dos bens em terras portuguesas, além de proporcionar ao rei de Castela algum tipo de pretensão territorial em tempo de guerra.

Esta relativa autonomia dos hospitalários portugueses em relação ao comendador da Hispânia não seria suficiente para resolver alguma questão hierárquica de maior importância: o grão-comendador da ordem residia em Castela, eterna rival de Portugal. Como afirma Erdmann, "Só lhe interessava (a D. Dinis) que o rico património (templário) não saísse para fora do país. É o que teria acontecido, pelo menos em parte, se os bens passassem para os cavaleiros de S. João" (ERDMANN, 1940: 51).

A preocupação de D. Dinis com a demarcação territorial do reino de Portugal não era injustificada; os freires portugueses da Ordem de Santiago (ou Calatrava), que desde 1288 não estavam mais sujeitos ao mestre de Castela por decisão do papa Nicolau IV (1288-1292), voltavam agora a sê-lo, por decreto de Bonifácio VIII (1294-1303). A subordinação da Ordem de Santiago portuguesa ao mestre de Castela só foi resolvida oficialmente em 1319, pelas bulas Olim felicis (27 de fevereiro de 1319) e Tunc digne (1 de julho do mesmo ano), ambas do papa João XXII; os freires portugueses de Calatrava não ficavam mais sujeitos à Castela (Bula do papa Nicolau IV: Pastoralis officii [17 de setembro de 1288]; bula de Bonifácio VIII: Ab antiquis retro[20 de julho de 1295] - ALMEIDA, volume I, 1967: 151).

Na distribuição das fortificações das ordens militares, levou-se em conta a proteção militar das cidades de Lisboa e Santarém. Os hospitalários (no mapa, seus domínios estão marcados por listras verticais cinzas) defendiam a entrada pelo Tejo ao norte, a partir do Zêzere, com base em Belver e Crato. Da mesma forma, os templários (listras inclinadas para a direita), tinham fortificações em Castelo Branco, Soure, Pombal e Tomar. Os cavaleiros da Ordem de Avis (listras horizontais laranjas), controlavam a via que vinha de Badajoz e Mérida. A Ordem de Santiago (listras verdes inclinadas para a esquerda) participou diretamente da vitoriosa conquista do Alentejo. Assim, recebeu em troca o controle da estrada que vinha do Sul: Mértola, Beja e Aljustrel, até Alcácer do Sal. Ressalte-se, por fim, o talhe geográfico do reino de Portugal, quase que totalmente baseado na existência das ordens militares, fosse para a guerra ou para as atividades de repovoamento. Os principais castelos estão marcados por pontos vermelhos; os mosteiros em quadrados azuis. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal - A Monarquia Feudal (1096-1480), Lisboa, Editorial Estampa, s/d, p. 212.

Isto poderia causar sério transtorno à coroa, pois os cavaleiros de Santiago receberam dos reis portugueses muitos castelos limítrofes com o reino de Castela. A ordem crescera de importância desde quando da conquista do Algarve durante a campanha militar de 1249-1250 e as subseqüentes doações de Afonso III (1245-1279) (MARQUES, 1994: 125-152). Somando isso à questão da subordinação dos hospitalários portugueses ao mestre de Castela, criava-se um problema essencial para a soberania portuguesa. Ambas as ordens (Santiago e do Hospital) possuíam um vasto território no reino, além do problema templário.

Mas voltemos ao caso do Templo. Os procuradores portugueses apresentaram a João XXII a seguinte proposta: em Castro Marim, castelo do reino de Algarve, na fronteira com os muçulmanos, seria fundada uma (nova) ordem monástico-militar portuguesa de cavalaria, e D. Dinis doaria o castelo e todos os direitos que exercia nele.

O papa concordou (bula de João XXII, Ad ea ex quibus) (ALMEIDA, volume I, 1967: 351), e a ordem foi estabelecida no dito castelo, com igreja paroquial de Santa Maria do Castelo, no bispado de Silves, seguindo a regra de Santiago (Calatrava) - pouco depois, aproximadamente em 1338, a Ordem do Templo transferiu-se para Tomar.

O papa, através das bulas Venientes e Ad ea ex quibus(15 e 14 de março de 1319), denominou-a Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, com Gil Marques ocupando a posição de mestre (já era mestre da casa de Avis, outra ordem religiosa-militar de grande força política em Portugal). Os futuros mestres seriam eleitos pelos freires professos, e a supervisão da ordem ficava sob a responsabilidade do abade de Alcobaça.

Torre de Menagem do Castelo, em Castelo Branco. In: LEITE, Ana Cristina. Castelo Branco. Lisboa: Editorial Presençsa, 1991, p. 11. "Eu, Pedro Alvito, mestre da milícia do Templo com o convento de Portugal, queremos restaurar e povoar Castelo Branco. A vós, presentes e futuros, damos o foro e costumes de Elvas, e que duas partes dos cavaleiros vão ao fossado, e a terça parte fique na Vila, e façam fossado uma vez por ano" (Primeiro Foral de Castelo Branco, c. 1213).

Com Gil Marques como mestre da Ordem de Cristo, D. Dinis resolvia o problema do controle sobre a Ordem do Templo. A Ordem de Cristo recebeu da coroa portuguesa todos os bens templários, a vila de Castro Marim, e a da maior parte dos ex-freires do Templo. De acordo com seus estatutos, feitos em 1321, a Ordem de Cristo tinha um efetivo relativamente pequeno: 69 cavaleiros armados e montados, 9 clérigos e 6 sargentos, num total de 84 freires.

Os sargentos (sergentes) eram uma espécie de escudeiros. Serviam os monges-cavaleiros, vestiam-lhes e preparavam as armas, cuidando dos cavalos e do serviço de limpeza. Com o passar do tempo, passaram a receber o hábito religioso. O efetivo foi pouco depois alterado, pois na Constituição de Tomar de 1326 se diz o seguinte: "Ordenamos, e estabelecemos, e outorgamos, que para todo o sempre haja na dita nossa ordem oitenta e seis freires, ao menos, como dito é. Dos quais sejam setenta e um freires cavaleiros, guisados de cavalos, e armas, e outros (quinze) serem clérigos, e sergentes" (ALMEIDA, volume I, 1967: 156).

Este número reduzido caracterizava a Ordem de Cristo como um corpo militar de elite, permanentemente pronto para entrar em combate. Daí sua importância para a coroa portuguesa e para o processo de Reconquista, pois, como afirma Humberto Baquero Moreno, "...na Península Ibérica durante a época medieval o exército não constituiu um corpo armado com caráter de permanência, procedendo apenas ao recrutamento de homens quando as necessidades de natureza militar assim o impunham" (MORENO, 1991: 29-40).

Assim, este corpo de elite supria uma necessidade vital para a consolidação e o fortalecimento do estado português. Ele, assim como as outras ordens militares em solo luso, atendia à necessidade do estado de possuir um exército permanente, mesmo que em número limitado.

De qualquer forma, assim se deu a nacionalização dos bens templários em terras portuguesas. A Ordem de Cristo ficava assim "praticamente à mercê da coroa" (MATTOSO, 1986: vol. II, 164). D. Dinis mostrou grande perspicácia política, aproveitando o momento que se lhe oferecera. Portugal caminhava a passos largos para a afirmação de sua identidade nacional, forjada desde Afonso Henriques com uma mentalidade de cruzada, que tinha nas ordens militares - especialmente agora em sua própria ordem - seu maior paradigma.

A Ordem de Cristo, situada no âmbito da esfera política da coroa, a partir do século XV, alargou seus horizontes, direcionando e conduzindo a expansão marítima lusitana. Como entendemos, a criação de uma ordem militar portuguesa está inserida dentro do lento processo de formação da identidade nacional portuguesa, vital para o processo de expansão lusitana dos séculos seguintes: "Mas a facilidade de comunicações não era bastante para diluir os propósitos localistas e o espírito de bairro que animava todos os municípios durante a Idade Média, ajudando a travar o surto de uma consciência nacional, que só a unidade de língua e a necessidade de defesa contra o Castelhano puderam ao fim cimentar" (MARQUES, 1987: 02).

Seu maior incentivador foi o infante D. Henrique, terceiro filho de D. João I (1385-1433), que, em 1420, aos 26 anos, tornou-se mestre português da ordem, combatendo os mouros em Ceuta e ajudando Portugal a se expandir para além-mar:

"...o Infante foi, até a sua morte, o principal impulsionador dos empreendimentos de descoberta (...) Graças à sua imensa fortuna e aos bens da Ordem de Cristo, de que se tornou grão-mestre, podia arcar com as enormes despesas que as expedições exigiam" (TEYSSIER, 1992).

A permanência dessa mentalidade de cruzada, que insistia em se prolongar para além dos séculos XII-XII, levou os navegantes portugueses a caminhos desconhecidos; essa mesma mentalidade de cruzada motivou o rei Afonso V, o Africano (1432-1481), nas palavras de Armindo de Souza, "um cruzado fora de época, o último cruzado", a ousar penetrar na África: "Em 1458 conquista-se Alcácer Ceguer. Em 1463-1464, tenta-se Tânger, mas desiste-se. Em 1469 é a vez de Anafé, a actual Casablanca, que logo se abandonou, por ficar situada desconfortavelmente ao sul. Em 1471 cai Arzila." (SOUZA, s/d: 505-506).

Esse impulso conquistador trouxe Portugal para um papel de destaque no palco maior dos atos humanos, a História. No cerne dessas realizações está sua mentalidade de cruzada, resquício medieval último, legado direto deixado pelas ordens militares:

"...sabia-se que a penetração em África seria uma guerra aos mouros como as precedentes lutas multi-seculares. Também nos marroquinos se viam ‘mouros’ (...) A seguir a estas conquistas em Marrocos, as viagens marítimas desenvolveram-se ao longo da costa ocidental africana. Aludimos atrás à parte que nelas teve a Ordem de Cristo, continuadora dos templários (...). O papel desempenhado pela ideia de cruzada desde os descobrimentos portugueses está, pois, ìntimamente ligado à sua anterior evolução nas guerras com os mouros" (ERDMANN, 1940: p. 57-58).

Na verdade, é o português cabralino o último cruzado. As caravelas que aportam no Brasil têm em sua estampa a velha cruz templária, eterno símbolo da cruzada contra o "outro". Esse foi um motivo maior do processo de formação da identidade nacional portuguesa.

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Bibliografia ALMEIDA, Fortunato de. História da Igreja em Portugal. Porto: Portucalense Editora, S.A.R.L., volume I, 1967.

BARBER, Malcolm. The Trial of the Templars. Cambridge: University Press, 1991.

COSTA, Ricardo L. S. da. A Ordem dos cavaleiros do Hospital de São João de Jerusalém durante as cruzadas (1048-1291). Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá, mimeografado, 1994.

DEMUGER, Alain. Auge y caída de los Templarios (1118-1314). Barcelona: Ed. Martínez Roca, 1986.

ERDMANN, Carl. A Idea de Cruzada em Portugal. Coimbra: Public. do Instituto Alemão da Universidade de Coimbra, 1940.

LEHMANN, Johannes. Las cruzadas - los aventureros de Dios. Barcelona: Martínez Roca, 1989.

MARQUES, A. H. de Oliveira. A Sociedade Medieval Portuguesa - aspectos da vida cotidiana. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1987.

MARQUES, José. "Os Castelos Algarvios da Ordem de Santiago no Reinado de D. Afonso III". In: Relações entre Portugal e Castela nos finais da Idade Média. Braga: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p. 125-152.

MATTOSO, José. Identificação de um país - ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325). Lisboa: Ed. Estampa, 1986, vol. II.

MATTOSO, José (dir.). História de Portugal - A Monarquia Feudal (1096-1480). Lisboa: Ed. Estampa, vol. II, s/d.

MORENO, Humberto Baquero. A Organização Militar em Portugal nos séculos XIV e XV. In: Revista da Faculdade de Letras - História, II série, vol. VIII. Universidade do Porto, 1991, pp. 29-40.

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SARAIVA, António José. O crepúsculo da Idade Média em Portugal. Lisboa: Gradiva, 1988.

SOUZA, Armindo de. "1325-1480 - Realizações". In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal — A Monarquia Guerreira (1096-1480). Lisboa: Editorial Estampa, vol. II, s/d.

TEYSSIER, Paul. "O século glorioso". In: Lisboa Ultramarina - 1415-1580: a invenção do mundo pelos navegadores portugueses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p. 13-46.

TUCHMAN, Barbara W. Um espelho distante - o terrível século XIV. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1990.

 http://www.ricardocosta.com/pub/ddinis.htm